Neste início de ano, uma vontade imensa de escrever sobre anjos. Estes seres alados e sem tempo, que povoam nossa imaginação e, em consequência, nossos pensamentos e crenças. E, mais uma vez, poetas, pintores e escultores se juntam neste louvor.
“Ela acreditava em anjo e, porque acreditava, eles existiam”
Clarice Lispector (1920-1977)
“A doce canção“, de Cecília Meireles (1901-1964)
Pus-me a cantar minha pena
com uma palavra tão doce,
de maneira tão serena,
que até Deus pensou que fosse
felicidade – e não pena.
Anjos de lira dourada
debruçaram-se da altura.
Não houve,no chão, criatura
de que eu não fosse invejada,
pela minha voz tão pura.
Acordei a quem dormia,
fiz suspirarem defuntos.
Um arco íris de alegria
da minha boca se erguia
pondo o sonho e a vida juntos.
O mistério do meu canto,
Deus não soube,tu não viste.
Prodígio imenso do pranto:
-todos perdidos de encanto,
só eu morrendo de triste!
Por assim tão docemente
meu mal transformar em verso,
oxalá Deus não o aumente,
para trazer o universo
de pólo a pólo contente.
“O Anjo da Escada“, de Mario Quintana (1906-1994)
Na volta da escada
Na volta escura da escada.
O Anjo disse o meu nome.
E o meu nome varou de lado a lado o meu peito.
E vinha um rumor distante de vozes clamando
clamando…
Deixa-me!
Que tenho a ver com as tuas naus perdidas?
Deixa-me sozinho com os meus pássaros…
com os meus caminhos…
com as minhas nuvens…
“Eu vi o anjo no mármore e o esculpi até ‘libertá-lo‘”.
Michelangelo Buonarroti
“Com licença poética“, de Adélia Prado (1935)
Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável.
Eu sou.
“A verdade é que ser anjo estava começando a me pesar.”
Clarice Lispector
“O anjo“, de Ferreira Gullar (1930-2016)
1. O anjo, contido
em pedra
e silêncio
me esperava.
Olho-o, identifico-o
tal se em profundo sigilo
de mim o procurasse desde o início.
Me ilumino! todo
o existido
fora apenas preparação
deste encontro.
2. Antes que o olhar, detendo o pássaro
no voo, do céu descesse
até o ombro sólido
do anjo,
criando-o
– que tempo mágico
ele habitava?
3. Tão todo nele me perco
que de mim se arrebentam
as raízes do mundo;
tamanha
a violência de seu corpo contra
o meu,
que a sua neutra existência
se quebra:
e os pétreos olhos
se acendem;
o facho
emborcado contra o solo, num desprezo
à vida
arde intensamente;
a leve brisa
faz mover a sua
túnica de pedra.
4. O anjo é grave
agora.
Começo a esperar a morte.
Autor: Catherine Beltrão