Avós eternizados

O dia dos avós é comemorado no Brasil em 26 de Julho. Dia da Santa Ana, mãe de Maria e avó de Jesus. Sant’Ana, a padroeira dos avós.

A base do texto de hoje é o conjunto de poemas chamado “Elegia“, de Cecília Meireles (1901-1964). Para ilustrar, obras de Leonardo da Vinci, Paul Cezanne, William Quiller Orchardson, John Morgan, Lucian Freud,  Ron Mueck, Edith Blin e um monumento da civilização olmeca.

Avos_CeciliaMeireles

Cecília Meireles

Uma elegia é uma composição poética que pertence ao gênero lírico, geralmente redigido em verso livre ou em tercetos. Este subgênero está associado ao lamento pela morte de um ente querido ou a qualquer acontecimento que provoca dor e tristeza. Esta “Elegia” de Cecília Meireles consta de oito poemas. Escrita no período de 1933 a 1937, foi dedicada à avó Jacinta Garcia Benevides. À sua leitura, percebe-se que os poemas discorrem desde o  falecimento até a exumação de Jacinta, percorrendo quatro anos de sentimentos de dor, separação, resignação, aceitação e lembranças da neta Cecília, um dos maiores nomes da poesia brasileira.

Avos_A Virgem, o Menino Jesus e Santa Ana

“A Virgem, o Menino Jesus e Santa Ana”, de Leonardo da Vinci (1452-1519). Pintada entre 1508 e 1513, ost, 168 x 112 cm.

Minha primeira lágrima caiu dentro dos teus olhos. Tive medo de a enxugar: para não saberes que havia caído. No dia seguinte, estavas imóvel, na tua forma definitiva, modelada pela noite, pelas estrelas, pelas minhas mãos. Exalava-se de ti o mesmo frio do orvalho; a mesma claridade da lua. Vi aquele dia levantar-se inutilmente para as tuas pálpebras, e a voz dos pássaros e das águas correr -sem que a recolhessem teus ouvidos inertes. Onde ficou teu outro corpo? Na parede? Nos imóveis? no teto? Inclinei-me sobre o teu rosto, absoluta, como um espelho, E tristemente te procurava. Mas também isso foi inútil, como tudo mais.

Avos_Monumento

“O monumento a Avó”, do sítio arqueológico La Venta,  em Xalapa, Veracruz, no México. Da civilização olmeca, uma das primeiras civilizações das Américas, estabelecida entre 1600 AC a 600 AC.

Neste mês, as cigarras cantam e os trovões caminham por cima da terra, agarrados ao sol. Neste mês, ao cair da tarde, a chuva corre pelas montanhas, e depois a noite é mais clara, e o canto dos grilos faz palpitar o cheiro molhado do chão. Mas tudo é inútil, porque os teus ouvidos estão como conchas vazias, e a tua narina imóvel não recebe mais notícia do mundo que circula no vento. Neste mês, sobre as frutas maduras cai o beijo áspero das vespas… -e o arrulho dos pássaros encrespa a sombra, como água que borbulha. Neste mês, abrem-se cravos de perfume profundo e obscuro; a areia queima, branca e seca. junto ao mar lampejante; de cada fronte desce uma lágrima de calor. Mas tudo é inútil, porque estás encostada à terra fresca, e os teus olhos não buscam mais lugares nesta paisagem luminosa, e as tuas mãos não se arredondam já para a colheita nem para a carícia. Neste mês, começa o ano, de novo, e eu queria abraçar-te. Mas tudo é inútil: eu e tu sabemos que é inútil que o ano comece.

Avos_JohnMorgan

“Procurando o Texto” , de John Morgan (1822-1885)

Minha tristeza é não poder mostrar-te as nuvens brancas, e as flores novas como aroma em brasa, com as coroas crepitantes de abelhas. Teus olhos sorririam, agradecendo a Deus o céu e a terra: eu sentiria teu coração feliz como um campo onde choveu. Minha tristeza é não poder acompanhar contigo o desenho das pombas voantes, o destino dos trens pelas montanhas, e o brilho tênue de cada estrela brotando à margem do crepúsculo. Tomarias o luar nas tuas mãos, fortes e simples como as pedras, e dirias apenas: “Como vem tão clarinho!” E nesse luar das tuas mãos se banharia a minha vida, sem perturbar sua claridade, mas também sem diminuir minha tristeza.

Avos_Cezanne

“Idosa com um Rosário”, de Paul Cézanne (1839-1906)

Escuto a chuva batendo nas folhas, pingo a pingo. Mas há um caminho de sol entre as nuvens escuras. E as cigarras sobre as resinas continuam cantando. Tu percorrias o céu com teus olhos nevoentos, e calcularias o sol de amanhã, e a sorte oculta de cada planta. É amanhã descerias toda coberta de branco, brilharias à luz como o sal e a cânfora, tomarias na mão os frutos do limoeiro, tão verdes, e entre o veludo da vinha, verias armar-se o cristal dos bagos. E olharias o sol subindo ao céu com asas de fogo. Tuas mãos e a terra secariam bruscamente. Em teu rosto, como no chão, haveria flores vermelhas abertas. Dentro do teu coração, porém, estavam as fontes frescas, sussurrando. E os canteiros viam-te passar como a nuvem mais branca do dia.

(c) Museums Sheffield; Supplied by The Public Catalogue Foundation

“Nell e seu Avô na Floresta”, de William Quiller Orchardson (1832-1910)

Um jardineiro desconhecido se ocupará da simetria desse pequeno mundo em que estás. Suas mãos vivas caminharão acima das tuas, em descanso, das tuas que calculavam primaveras e outonos, fechadas em sementes e escondidos na flor! Tua voz sem corpo estará comandando, entre terra e água, o aconchego das raízes tenras, a ordenação das pétalas nascentes. À margem desta pedra que te cerca, o rosto das flores inclinará sua narrativa: história dos grandes luares, crescimento e morte dos campos, giros e músicas de pássaros, arabescos de libélulas roxas e verdes. Conversareis longamente, em vossa linguagem inviolável. Os anjos de mármore ficarão para sempre ouvindo: que eles também falam em silêncio. Mas a mim – se te chamar, se chorar – não me ouvirás por mais perto que venha, não sou mais que uma sombra caminhando em redor de uma fortaleza. Queria deixar-te aqui as imagens do mundo que amaste: o mar com seus peixes e suas barcas; os pomares com cestos derramados de frutos; os jardins de malva e trevo, com seus perfumes brancos e vermelhos. E aquela estrela maior, que a noite levava na mão direita. E o sorriso de uma alegria que eu não tive, mas te dava.

Avos_autorretratoEdith_1948

“Autorretrato”, de Edith Blin (1891-1983), minha avó. 1948, ost.

Tudo cabe aqui dentro: vejo tua casa, tuas quintas de fruta, as mulas deixando descarregarem seirões repletos, e os cães de nomes antigos ladrando majestosamente para a noite aproximada. Tange a atafona sobre uma cantiga arcaica: e os fusos ainda vão enrolando o fio para a camisa, para a toalha, para o lençol. Nesse fio vai o campo onde o vento saltou. Vai o campo onde a noite deixou seu sono orvalhado. Vai o sol com suas vestimentas de ouro cavalgando esse imenso gavião do céu. Tudo cabe aqui dentro: teu corpo era um espelho pensante do universo. E olhavas para essa imagem, clarividente e comovida. Foi do barco das flores, o teu rosto terreno, e uns líquens de noite sem luzes se enrolaram em tua cabeça de deusa rústica. Mas puseram-te numa praia de onde os barcos saíam para perderem-se. Então, teus braços se abriram, querendo levar-te mais longe: porque eras a que salvava. E ficaste com um pouco de asas. Teus olhos, porém, mediram a flutuação do caminho. Por isso, tua testa se vincou de alto a baixo, e tuas pálpebras meigas se cobriram de cinza.

Avos_LucienFreud

Um dos retratos da mãe do pintor, feito em 1972. De Lucian Freud (1922-2011)

O crepúsculo é este sossego do céu com suas nuvens paralelas e uma última cor penetrando nas árvores até os pássaros. É esta curva dos pombos, rente aos telhados, este cantar de galos e rolas, muito longe; e, mais longe, o abrolhar de estrelas brancas, ainda sem luz. Mas não era só isto, o crepúsculo: faltam os teus dois braços numa janela, sobre flores, e em tuas mãos o teu rosto, aprendendo com as nuvens a sorte das transformações. Faltam teus olhos com ilhas, mares, viagens, povos, tua boca, onde a passagem da vida tinha deixado uma doçura triste, que dispensava palavras. Ah, falta o silêncio que estava entre nós, e olhava a tarde, também. Nele vivia o teu amor por mim, obrigatório e secreto. Igual à face da Natureza: evidente, e sem definição. Tudo em ti era uma ausência que se demorava: uma despedida pronta a cumprir-se. Sentindo-o, cobria minhas lágrimas com um riso doido. Agora, tenho medo que não visses o que havia por detrás dele. Aqui está meu rosto verdadeiro, defronte do crepúsculo que não alcançaste Abre o túmulo, e olha-me: dize-me qual de nós morreu mais.

Avos_mulher-velha-na-cama

“Mulher velha na cama”, de Ron Mueck (1958). Escultura feita em 2002, inspirada na sua avó doente.

Hoje! Hoje de sol e bruma, com este silencioso calor sobre as pedras e as folhas! Hoje! sem cigarras nem pássaros. Gravemente. Altamente. Com flores abafadas pelo caminho, entre essas máscaras de bronze e mármore eterno rosto da terra. Hoje. Quanto tempo passou entre a nossa mútua espera! Tu, paciente e inutilizada, cantando as horas que te desfaziam. Meus olhos repetindo essas tuas horas heróicas, no brotar e morrer desta última primavera que te enfeitou. Oh, a montanha de terra que agora vão tirando do teu peito! Alegra-te, que aqui estou, fiel, neste encontro, como se do modo antigo vivesses ou pudesses, com a minha chegada, reviver. Alegra-te, que já se desprendem em tábuas que te fecharam, como se desprendeu o corpo em que aprendeste longamente a sofrer. E, como o áspero ruído da pá cessou neste instante, ouve o amplo e difuso rumor da cidade em que continuo, -tu, que resides no tempo, no tempo unânime! Ouve-o e relembra não as estampas humanas: mas as cores do céu e da terra, o calor do sol, a aceitação das nuvens, o grato deslizar das águas dóceis, tudo o que amamos juntas. Tudo em que me dispersei como te dispersaste. E mais esse perfume de eternidade, intocável e secreto, que o giro do universo não perturba. Apenas, não podemos correr, agora, uma para a outra. Não sofras, por não te poderes levantar do abismo em que te reclinas: não sofras, também, se um pouco de choro se debruça nos meus olhos, procurando-te. Não te importes que escute cair, no zinco desta humilde caixa, teu crânio, tuas vértebras, teus ossos todos, um por um… Pés que caminhavam comigo, mãos que me iam levando, peito do antigo sono, cabeça do olhar e do sorriso… Não te importes. Não te importes… Na verdade, tu vens como eu te queria inventar: e de braço dado desceremos por entre pedras e flores. Posso levar-te ao colo, também, pois na verdade estás mais leve que uma criança. – Tanta terra deixaste porém sobre o meu peito! irás dizendo, sem queixa, apenas como recordação. E eu, como recordação, te direi: – Pesaria tanto quanto o coração que tiveste, o coração que herdei? Ah, mas que palavras podem os vivos dizer aos mortos? E hoje era o teu dia de festa Meu presente é buscar-te: Não para vires comigo: para te encontrares com os que, antes de mim, vieste buscar, outrora. Com menos palavras, apenas. Com o mesmo número de lágrimas. Foi lição tua chorar pouco, para sofrer mais. Aprendi-a demasiadamente. Aqui estamos, hoje. Com este dia grave, de sol velado. De calor silencioso. Todas as estátuas ardendo. As folhas, sem um tremor. Não tens fala, nem movimento nem corpo. E eu te reconheço. Ah, mas a mim, a mim. Quem sabe se me poderás reconhecer!

É importante lembrar que Cecília Meireles foi criada pela avó Jacinta, citada na dedicatória desta “Elegia“, desde os três anos de idade, depois da morte de seus pais.

Quanto a mim, fui criada pela minha avó Edith Blin, desde os dez dias de vida.

Por hoje, é só.

Autor: Catherine Beltrão

Comments(2)

  1. Responder
    Annelise Gripp says:

    Amiga,

    Mais uma vez leio seu post com satisfação. Assim como avós, vc transmitiu a doçura em suas palavras, porque também é avó 🙂
    Parabens pelo lindo texto e pelo seu dia!

    Bjks
    Annelise

    • Responder
      Catherine Beltrão says:

      Obrigada, querida Annelise! Quanto mais conheço a obra de Cecília Meireles, mais ela penetra em meu coração. Esta “Elegia” é de uma beleza transcendental, escrita durante quatro anos, após o falecimento de sua avó/mãe Jacinta. Podemos ver a transformação de seu sentimento de dor por esta perda tão significativa. A identificação foi total. Um forte abraço!

Comente