Van Gogh: 40 autorretratos e 800 cartas

Vincent van Gogh, sem dúvida o mais conturbado e valorizado pintor do século XIX, pintou mais de 40 autorretratos somente no período 1886 a 1889. Ele também teria escrito mais de 800 cartas, a maioria para o seu irmão Théo.  Por que Van Gogh tinha esta imensa necessidade de expor seu mundo interior?

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O último autorretrato de Van Gogh. 1889
Vídeo com alguns dos autorretratos.

Este post apresenta 17 destes autorretratos, além de trechos de algumas de suas cartas.

Em sua última carta, escreveu: “[…] em meu próprio trabalho arrisco a vida e nele minha razão arruinou-se em parte […]”

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“Autorretrato, com orelha enfaixada e cachimbo”. 1889

VanGogh_autorretrato3Algumas vezes Vincent se referiu a Paul Gauguin, seu grande amigo: “Eu por mim acredito que Gauguin tinha se desanimado um pouco com a boa cidade de Arles, com a casinha amarela onde
trabalhamos e, sobretudo, comigo. De fato, tanto para ele quanto para mim, aqui ainda existiriam sérias dificuldades a vencer. Mas estas dificuldades estão mais dentro de nós mesmos que em qualquer outra parte. Em suma, por mim eu acredito que ou ele vai decididamente partir, ou ele decididamente ficará aqui.”

E após decepar sua orelha, também se preocupou com Gauguin:

“Falemos agora de nosso amigo Gaugin, eu o assustei? Afinal porque ele não me dá nenhum sinal de vida? Ele deve ter ido embora contigo. Aliás, ele precisava rever Paris, e em Paris talvez ele se sinta mais em casa do que aqui. Diga a Gauguin que me escreva, e que sempre penso nele.”

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“Autorretrato”. 1889

Escreveu sobre ‘bondade’. E sobre ‘loucura’.

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“Autorretrato, dedicado a Gauguin”. 1888

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“Autorretratoi sem barba”. 1889

“Devo dizer que os vizinhos etc. são de uma bondade particular comigo, como todo mundo aqui sofre seja de febre, seja de
alucinação ou loucura, entendemo-nos como gente de família […] Quanto a considerar-me totalmente são, não devemos fazê-lo […] Peço-lhe, portanto, que não diga que eu não tenho nada, ou não teria nada.” 1889

O que me consola um pouco é que estou começando a considerar a loucura como uma doença qualquer, e aceito a coisa como ela é, enquanto que, durante as crises, parecia-me que tudo o que eu imaginava era real […] Poupe-me das explicações, mas peço a você e aos Srs. Salles e Rey que ajam de maneira que fim do mês ou começo de maio eu vá para lá como pensionista internado.” 1889

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“Autorretrato”. 1888

E o “ser vagabundo”…

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“Autorretrato”. 1888

VanGogh_autorretrato4“Escrevo-lhe um pouco ao acaso o que me vem à pena, ficaria muito contente se de alguma maneira você pudesse ver em mim mais que um vagabundo. Acaso haverá vagabundos e vagabundos que sejam diferentes? Há quem seja vagabundo por preguiça e fraqueza de caráter, pela indignidade de sua própria natureza: você pode, se achar justo, me tomar por um destes.

Além deste, há um outro vagabundo, o vagabundo que é bom apesar de si, que intimamente é atormentado por um grande desejo de ação, que nada faz porque está impossibilitado de fazê-lo, porque está como que preso por alguma coisa, porque não tem o que lhe é necessário para ser produtivo, porque a fatalidade das circunstâncias o reduz a este ponto, um vagabundo assim nem sempre sabe por si próprio o que poderia fazer, mas por instinto, sente: “No entanto, eu sirvo para algo, sinto em mim uma razão de ser, sei que poderia ser um homem completamente diferente. No que é que eu poderia ser útil, para o que poderia eu servir; existe algo dentro de mim, o que será então?”.

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“Autorretrato”. 1887

VanGogh_autorretrato11Este é um vagabundo completamente diferente; você pode, se achar justo, tomar-me por um destes.Um pássaro na gaiola durante a primavera sabe muito bem que existe algo em que ele pode ser bom, sente muito bem que há algo a fazer, mas não pode fazê-lo. O que será? Ele não se lembra muito bem. Tem então vagas lembranças e diz para si mesmo: “Os outros fazem seus ninhos, têm seus filhotes e criam a ninhada”, e então bate com a cabeça nas grades da gaiola. E a gaiola continua ali, e o pássaro fica louco de dor.

“Vejam que vagabundo”, diz um outro pássaro que passa, “esse aí é um tipo de aposentado”. No entanto, o prisioneiro vive, e não morre, nada exteriormente revela o que se passa em seu íntimo, ele está bem, está mais ou menos feliz sob os raios de sol. Mas vem a época da migração. Acesso de melancolia – “mas” dizem as crianças que o criam na gaiola, “afinal ele tem tudo o que precisa”. E ele olha lá fora o céu cheio, carregado de tempestade, e sente em si a revolta contra a fatalidade. “Estou preso, estou preso e não me falta nada, imbecis! Tenho tudo que preciso. Ah! Por bondade, liberdade! ser um pássaro como os outros.”

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“Autorretrato”. 1887

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“Autorretrato”. 1887

Aquele homem vagabundo assemelha-se a este pássaro vagabundo…E os homens ficam freqüentemente impossibilitados de fazer algo, prisioneiros de não sei que prisão horrível, horrível, muito horrível.
Há também, eu sei, a libertação, a libertação tardia. Uma reputação arruinada com ou sem razão, a penúria, a fatalidade das circunstâncias, o infortúnio, fazem prisioneiros.

Nem sempre sabemos dizer o que é que nos encerra, o que é que nos cerca, o que é que parece nos enterrar, mas no entanto sentimos não sei que barras, que grades, que muros.

Será tudo isto imaginação, fantasia? Não creio; e então nos perguntamos: meu Deus, será por muito tempo, será para sempre, será para a eternidade?

Você sabe o que faz desaparecer a prisão. É toda afeição profunda, séria. Ser amigos, ser irmãos, amar isto abre a porta da prisão por poder soberano, como um encanto muito poderoso. Mas aquele que não tem isto permanece na morte.

Mas onde renasce a simpatia, renasce a vida.

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“Autorretrato”. 1886/87

E as cores. Benditas cores.

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“utorretrato com cachimbo”. 1886

VanGogh_autorretrato16“… As cores se sucedem como que sozinhas e ao tomar uma cor como ponto de partida me vem claramente a cabeça o que deduzir, e como chegar a dar-lhe vida. Não posso entender, por isso, a grosso modo, que um pintor faz bem quando parte das cores de sua palheta em vez de partir das cores da natureza. Interessa-me menos que minha cor seja precisamente idêntica, ao pé da letra, a partir do momento em que minha tela ela fique tão bela quanto na vida. A cor, por si só, exprime alguma coisa, não se pode prescindir disso, é preciso tomar partido. O que produz beleza, beleza verdadeira, também é verdadeiro e isso realmente é pintura e é mais belo que a imitação exata das próprias coisas.”E depois, como você bem sabe, gosto muito de Arles, embora Gauguin tenha uma tremenda razão em chamá-la de a mais suja cidade de todo o Midi. E encontrei tantas amizades já entre os vizinhos, junto ao sr. Rey, e aliás entre todo mundo no hospício, que realmente eu preferiria continuar a ficar doente aqui, que esquecer a bondade destas mesmas pessoas que têm os mais incríveis preconceitos para com os pintores e a pintura. 1889

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“”Autorretrato”. 1886

E, novamente, a “bondade”:

Esses dias, mudando, transportando todos os móveis, embalando as telas que lhe enviarei, foi triste, mas me parecia muito mais triste o fato de que isso me foi dado com tanta fraternidade por você, e que durante tantos anos foi no entanto você sozinho quem me sustentou, e afinal ser obrigado a vir lhe contar toda esta triste história; mas me é difícil exprimir isto como eu o sentia. A bondade que você teve para comigo não se perdeu, pois você a teve e isto permanece sendo seu, e mesmo que os resultados materiais fossem nulos, é razão a mais para que isto permaneça sendo seu […]. 1889

Todas as suas bondades para comigo, hoje eu as achei maiores do que nunca, não consigo dizer-lhe como eu o sinto, mas eu lhe asseguro que essa bondade foi de um bom quilate, e se você não vê seus resultados, meu caro irmão, não se atormente por isto, sua bondade permanecerá.

O que fazer com tanta bondade, tanta loucura e a sensação de “ser vagabundo”? Pintar? Escrever? As duas coisas, sem dúvida alguma.

Autor: Catherine Beltrão

 

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