Da série “Quase cinzas de uma obra permanente”: Nu radioso

São tantas as obras de Edith Blin (1891-1983) que mereceram registro mediático no decorrer de seus 40 anos de produção na pintura que fica difícil escolher a próxima a ser apresentada nesta série “Quase cinzas de uma obra permanente“. Desta vez, resolvi focar um de seus sublimes nus, o emblemático “Nu radioso“.

Edith - Nu radioso

“Nu radioso”, de Edith Blin. 1945, ost, 65 X 54cm

Este nu fez parte de duas exposições da artista, em agosto de 1945, na Galeria Montparnasse e em junho de 1946, no Palace Hotel, ambas no Rio de Janeiro. São apresentadas neste post duas das inúmeras matérias publicadas em jornais e revistas da época. Estas duas matérias apresentam a imagem do “Nu radioso“. A primeira  – “Escolheu um caminho na pintura” – é da revista “Vamos Ler!“, n• 473, de 23.08.1945, escrita por Gustavo Forte.

Mme Edith Blin, que há pouco mais de um ano brindou o público com a apresentação dos seus trabalhos na sala nobre do Palace Hotel, apresenta-se novamente ao julgamento dos críticos, desta feita no luxuoso salão da Galeria Montparnasse, onde exibe meia centena de telas realizadas com muita emoção e belas cores.

Esta é, pois, a segunda apresentação da simpática pintora francesa, cujo trabalho demonstra grande progresso e hercúleo esforço, pois devemos considerar que Mme Edith Blin iniciou-se nesta modalidade artística apenas há dois anos. A sua primeira exposição – que não constituiu, como era de supor, apresentação de trabalhos de principiante  – como todos devem estar lembrados, foi recebida com entusiasmo, porquanto, para suprir alguma deficiência técnica, a artista procurou na emoção o suficiente para equilibrar a sua obra e revigorar a fatura. Daí, aqueles nus apresentando cabeças cujas expressões valorizaram o trabalho em geral, mostrando que Mme Edith Blin possui grande poder interpretativo. Mercê dessa qualidade, os nus surgiram vigorosos; sem aquelas expressões de abandono ou sensualidade que caracterizam a maior parte dos trabalhos no gênero, porque a artista, grandemente emotiva, estereotipa sentimentos mais elevados. E agora, mais forte, mais senhora do desenho e da cromatização, encontrando dessa maneira maiores facilidades para se exteriorizar, Mme Edith Blin nos apresenta uma produção homogênea, muito pessoal e integralmente aceitável.

Trabalho seguro, forte – bastante forte para uma pintora cuja prática não vai além de dois anos – todas as telas expostas em Montparnasse estão sendo motivo das mais elogiosas referências por parte do público admirador das belas artes.

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“Escolheu um caminho na pintura”: matéria de Gustavo Forte, publicada na revista “Vamos ler!”, de agosto de 1945.

ALGUMAS PALAVRAS DA ARTISTA

Mme Edith Blin palestrou com o cronista. Falou da arte em geral, do que já e sobre o quê pretende alcançar na pintura.

– Eu não produzo – nos diz a expositora – visando apenas a contentar aqueles que adquirem o meu trabalho, pois me iniciei sem a intenção ou pretensão de me impor como profissional. Acontece, porém, que o gênero que escolhi agradou, fato esse que me estimulou sobremaneira. Continuei com maior entusiasmo procurando dar o máximo de vida às fisionomias e sentido mais objetivo à minha pintura. Trabalho de ficção ou menos real? Pode ser. Mas estou certo que não adultero os meus modelos, não falseio na verdade como muitas vezes acontece no gênero paisagem, onde a interpretação não permite apreciar da hora vivida na tela, e da região o colorido da vegetação, belíssimo, para armar efeito, não corresponde ao real. Eu aproveito os meus modelos aproveitando-lhes simplesmente a plástica. Daí por diante me concentro na expressão, pois é claro que o modelo não pode posar o estado de alma que faz vibrar o coração do artista. Por esse motivo será menos fiel o pintor? Creio que não, porque essa parte independe do modelo, demanda de muito estudo, de muita observação, a não ser que se queira produzir expressões clássicas de dor, alegria, tristeza, terror, etc., o que tornaria o gênero de irritante monotonia em virtude da repetição dos traços convencionais.

A FRANÇA NA PINTURA DE MME EDITH BLIN 

 Na pintura de Mme Edith Blin é possível notar um acentuada influência francesa no sentido propriamente interpretativo, visto que no técnico, embora procure o colorido entre os acadêmicos, no mais não se prende a nenhuma escola. Mme Edith Blin assim justifica essa influência:

– Nas minhas telas, em vista do meu gênero, não surgindo essa influência, o trabalho não me agradará, porque nasceu em desacordo com o que pretendi realizar… Sim, porque a França exerce sobre mim uma notável influência nesta época dura para o meu país. Muitas das minhas telas surgiram nos grandes dias desta guerra. Pintei-as com o entusiasmo que me encheu de tristeza e desespero. Essa cabeça “Pátria” é o fruto do meu contentamento no dia da libertação da capital da minha França. Não é “tricolor” para dar a ideia de patriotismo… Procurei, na expressão, colocar nos olhos e na boca aquilo que eu sentia. Creio que realizei o intento, e a tela aí está para julgamento. Pinto, pois, com os olhos voltados para o meu berço natal. E mesmo quando realizo trabalho independente de sentimentos patrióticos, não deixo de me animar por idêntico entusiasmo.

UM CAMINHO 

– Eu – continua Mme Edith Blin, não sou uma pintora de 18 anos. Penso, deduzo e não fico indecisa quanto ao caminho a seguir. Por isso, essa quantidade enorme de cabeças, somando mais de três quartos do meu trabalho. Por quê? É fácil: busco me aperfeiçoar nas expressões de sentimentos, pois estou certa de que os pintores, na atualidade, que conseguem esse objetivo, marcam a época e se firmam mercê de obra duradoura. Arte interpretativa feita pelo pintor, não a interpretação dada pelo leigo, pelo comprador de quadros… Para conseguir esse fim é que trabalho e estudo. Consegui um pouco e isso para mim é motivo de grande contentamento. As minhas expressões, eu sei, estão longe da perfeição. Mas, de boa fé, ninguém poderá dizer que eu as copiei dos clássicos e que para consegui-las lancei mão do convencionalismo! Tenho, pois, escolhido o meu caminho. Insistirei nele. Vitoriosa, terei o justo prêmio ao meu esforço, terei a realização do meu ideal. Porém, se parar, se ficar no ponto que consegui, que fazer? Pelo menos que se salve a minha boa vontade, o meu entusiasmo.

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Mme Edith Blin ainda palestrou muito com o cronista. Despretenciosa, porém, firme nos sues propósitos, crente no gênero que elegeu e no qual evidentemente realiza algo de aproveitável e duradouro, não se influencia por outras escolas, tendências e maneira de interpretar. Tolera nus, justifica outros, e, coletivamente, julga que o grande movimento artístico de hoje contribuirá para mais rápida evolução.

E – nos adianta para concluir – que felicidade para mim se amanhã eu puder figurar, mesmo nos últimos lugares, entre os que fizeram alguma coisa pela arte, pela espiritualidade do mundo!”

A segunda matéria – “Uma pintora muito feminina” – foi publicada na revista “Carioca”, n• 561, de 06.07.1946, de autoria de Olenka Távora.

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“Uma pintora muito feminina”, matéria de Olenka Távora, publicada na revista “Carioca”, em 06.07.1946

EDITH BLIN PINTA AS ESFINGES SEM CARECER DECIFRÁ-LAS, POIS COM ELA TAMBÉM ESTÁ O SEGREDO…

É natural que os críticos masculinos, analisando a bela exposição de quadros de Edith Blin, no Palace Hotel, emitam opiniões interessantes, justas e inflexíveis. Alguns – talvez poucos – desgostarão do gênero mais explorado pela artista francesa: o nu; a maioria, porém, particularizará uma qualidade de pintora: a sua poderosa fora expressionista que, na maioria das vezes, se concentra apenas nos olhos, expressão esta, eu creio, melhor compreendida pelos espíritos femininos.

Há, nas cabeças pintadas por Edith Blin – cabeças de mulheres de idade indefinida – uma angústia que as vezes se mistura à ansiedade ou ao desespero, dando lugar a expressões que raramente o homem – o pintor, é claro – poderá reproduzir, por motivo bem simples: o da impossibilidade de sentir as mesmas emoções de que o sexo frágil é presa, e também pela dificuldade em surpreender os verdadeiros estados de alma da mulher. Baseada neste princípio é que vi e analisei os trabalhos de Edith Blin, a mais feminina de quantas pintoras tenho conhecido. Das mais femininas e das mais arrojadas, porque Edith Blin não ficou no convencionalismo escolar e infantil das paisagens bem detalhadas, bem bonitinhas, ou nas indefectíveis flores que às vezes se assemelham a aplicações para nossos vestidos…

Edith Blin foi mais longe. Esporadicamente pinta flores ou paisagens. O seu forte são os estudos de nus, onde concentra todo o seu espírito, que digamos, é mais alto que suas possibilidades técnicas. É verdade que, em favor da artista, podemos invocar o pouco tempo de experiência: quatro anos. Convenhamos que realizar dentro desse lapso o que Edith Blin realiza, é alguma coisa de notável, que indica talento e abre horizontes mais largos.

Quem duvidar, que analise “Clair de lune”, tela na qual é possível ver alguma coisa a mais do que o êxtase da figura. Em “Abandono” é mais vigorosa, e creio se tratar de obra muito posterior ao “Clair de lune”. Num autorretrato, peça das mais interessantes na presente exposição, notamos maior espiritualidade. E tanto mais compreendemos a emoção da artista quando com ela conversamos ouvindo-lhe, através do falar nervoso, defender pontos de vista artísticos e maneiras de interpretar sentimentos.

O seu melhor elogio, para mim, está em afirmar que, pintando como pinta, mostra que nós, neste meado do Século XX, estamos nos libertando de muitos princípios errados, bolorentos, e que Edith Blin é uma vanguardeira bem representante do espírito feminino, realizando obra até bem pouco privilégio dos homens, que, apesar de tudo, das esfinges a carne é a única coisa que conseguem plasmar com fidelidade.

Edith Blin, não. Ela pinta as esfinges sem carecer decifrá-las, pois com ela também está o segredo!” 

Através dos anos, li e reli estas matérias várias vezes. Hoje, elas me parecem cada vez mais contundentes, mais diretas ao ponto. Hoje tenho absoluta certeza que a obra de Edith irá permanecer na história, na arte e na História da Arte. E este “Nu radioso” irá irradiar luz de onde ele estiver, seja em uma sala de museu, seja em um corredor esquecido de uma residência…

Para quem tiver curiosidade de ler mais posts sobre a série “Quase cinzas de uma obra permanente“, clique nos links abaixo:

“Carnaval e quase cinzas… de Edith Blin” (post que deu origem à série); “Quase cinzas de uma obra permanente”: Piéta (parte I) ; “Quase cinzas de uma obra permanente”: Piéta (parte II); “Quase cinzas de uma obra permanente”: Marquesa; “Quase cinzas de uma obra permanente”: Junho 1940; “Quase cinzas de uma obra permanente”: França livre.

Autor: Catherine Beltrão

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