Da série “Quase cinzas de uma obra permanente”: Piéta (parte I)

Não se trata de nenhum dos tons de cinza que tanto se comenta por aí. Também não se trata das cinzas da quarta-feira, pois o carnaval já passou e a quarta idem. Trata-se de apresentar aqui o primeiro post da série “Quase cinzas de uma obra permanente“,  que já teve uma introdução, há poucos dias: “Carnaval … e quase cinzas de Edith Blin“.

A série em questão pretende mostrar algumas obras de Edith Blin (1891-1983), que mereceram registros na mídia impressa, em seus quarenta anos de pintura. Edith, pintora francesa e que chegou ao Brasil em 1935,  viveu por aqui quase 50 anos. Desta forma, esta série também não deixa de ser um resgaste de sua obra e de sua importância no cenário artístico, tanto do Brasil como da França.

A primeira obra a ser apresentada na série é “Piéta“.

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“Piéta”, de Edith Blin. 1944, óleo sobre madeira, 102 X 78cm

Edith pintou “Piéta” em 1944, durante a Segunda Guerra Mundial. É uma obra histórica, realizada em solo brasileiro, mas com a alma e o coração voltados para as atrocidades que aconteciam em sua terra natal.  Na obra, as figuras da célebre Pietá, de Michelangelo, foram trocadas: não é a mãe que carrega o filho morto, mas sim o filho que carrega a mãe morta, tendo ao fundo imagens de monumentos bombardeados da cidade de Caen/Normandia.

Esta obra mereceu uma matéria no jornal “Paris-Normandie“, em sua edição número 948, de 4/5 de outubro de 1947, assinada por Paul Lecomte, 1er prix de Rome, “La “Piéta” d’Edith Blin“:

“Cet après-midi, à 15 heures, à l’Office Municipal de la Jeunesse, sous la présidence de M. le docteur Gosselin, conseiller général d’Evrecy, président de la Fédération du Calvados de l’Association France-Grande-Bretagne, será vendu aux enchères, au profit du Monument Comunal du Cimetière Militaire de Tourville-sur-Odon, un tableau d’Edith Blin: “Piéta”.

Qui est Edith Blin? Une artiste, une très grande artiste même, dans le sens le plus large du mot, qui a beaucoup voyagé, beaucoup vu et entendu. Beaucoup vécu et qui, un jour, pas tellement lointain – c’était à Rio de Janeiro – a cherché à exprimer le désenchantement qu’elle portait en elle.

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“La Piéta d’Edith Blin”, por Paul Lecomte. Matéria publicada no jornal Paris-Normandie, em outubro de 1947.

Elle aurait pu comme Baudelaire dont ele est pétrie, exprimer ce désenchantement en des vers immortels ou, comme Chopin, en d’inoubliables melodies. Elle a préféré comme Goya, la peinture; mais elle n’avait jamais touché un pinceau et elle n’avait jamais reçu la moindre leçon de peinture, et elle ignore aujourd’hui encore les rudiments les plus élémentaires de son art. Son oeuvre témoigne parfois cruellement de cette absence de fondements, quand elle s’égare par exemple à faire une peinture de genre, à travailler “à la manière de…” ou tout simplement à copier, fût-ce dans la nature, une nature morte, une figure ou même un paysage.

Mais quand, dans son atelier désert et dépouillé, sans modèle d’aucune sorte, seule devant sa toile nue, elle exprime à la diable, au mépris de toutes les lois, de toutes les règles de dessin d’anatomie, de perspective, ce qu’elle porte en elle, alors oui! Elle s’élève très haut, peut-être au dessus de la masse des peintres; et quelque chose d’indéfinissable, de mystérieux – qui nous dépasse tous – se dégage de son oeuvre. Cette “Piéta” – étrange mélange de puérilités désarmantes et d’indéfinissable grandeur – en apporte le témoignage.

Je ne dis pas qu’Edith Blin sache peindre, je ne dis pas davantage qu’elle le saura jamais, au sens classique du mot… l’avenir n’appartenant à personne – mais simplement qu’Edith Blin – oiseau des Iles – est une grande, une très grande artiste.

C’est le seul, mais c’est aussi le plus bel hommage que je puisse lui rendre.”

Abaixo, a tradução:

“Esta tarde, às 15h, no Escritório Municipal da Juventude, sob a presidência do Sr. Dr. Gosselin, conselheiro geral de Evrecy, presidente da Federação de Calvados da Associação França-Grãbretanha, será leiloado, em benefício do Monumento Comunal do Cemitério Militar de Tourville-sur-Odon, uma tela de Edith Blin: “Pietá”.

 Quem é Edith Blin? Uma artista, uma muito grande artista mesmo, no sentido maior da palavra, que viajou muito, viu e ouviu muito. Viveu muito e que, um dia, não muito distante – era no Rio de Janeiro – procurou expressar o desencanto que levava em seu interior.

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“La Piéta d’Edith Blin”, por Paul Lecompte. Detalhe.

Ela poderia como Baudelaire, por quem ela é aficcionada, expressar este desencanto através de versos imortais ou, como Chopin, através de melodias inesquecíveis. Ela preferiu, como Goya, a pintura; mas ela nunca havia tocado um pincel e ela não havia jamais tido uma única aula de pintura, e ela ainda hoje ignora os rudimentos mais elementares de sua arte. Sua obra testemunha às vezes cruelmente esta ausência de fundamentos, quando ela se dispõe por exemplo a fazer pintura de gênero, a trabalhar “à maneira de…” ou simplesmente a copiar, seja na natureza, uma natureza morta, uma figura ou mesmo uma paisagem.

Mas quando, em seu atelier deserto e despojado, sem nenhum modelo, só diante de sua tela nua, ela expressa sem cuidado, com desprezo de todas as leis, de todas as regras de desenho da anatomia, de perspectiva, aquilo que ela traz dentro de si, então sim! Ela se eleva muito alto, talvez acima da massa dos pintores; e alguma coisa de indescritível, de misterioso – que ultrapassa a todos nós – se liberta de sua obra. Esta “Pietá” – estranha mistura de puerilidades desarmantes e de grandeza indefinida – traz este testemunho.

Não digo que Edith Blin saiba pintar, não digo também que um dia ela ainda saberá, no sentido clássico da palavra… o futuro não pertence a ninguém – mas simplesmente que Edith Blin – pássaro das Ilhas – é uma grande, uma muito grande artista.

É a única, mas é também a mais bela homenagem que eu posso lhe fazer.”

No próximo post (parte II), será apresentando o manuscrito referente ao leilão citado na matéria.

Autor: Catherine Beltrão

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