Pancetti e Cecília Meireles: dois amantes do mar

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Cecília Meireles

Pancetti

José Pancetti

No Dia Mundial da Água, a gente pensa em mar. Pensando em mar, a lembrança chega em Pancetti e Cecília Meireles. José Pancetti (1902-1958), o maior paisagista moderno do Brasil. Entre as paisagens, marinhas incontestáveis. Cecília Meireles (1901-1964), a voz lírica mais importante da língua portuguesa. Entre os seus poemas, o mar é uma referência constante.

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“Marinha”, ost, déc. 50

Sobre Pancetti, disse o crítico Frederico Morais: “A pintura de Pancetti é como um convés de navio, curtida de sol e sal. Não enferruja. Honesta, limpa, econômica, direta, austera, quase seca, mesmo quando a cor se expande e o gesto abriga a emoção.”

E chega a voz de Cecília, que pôs o seu sonho em um navio…

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“Canoa na Praia” – Saquarema, ost, déc.50

Pus o meu sonho num navio
 e o navio em cima do mar;
 depois abri o mar com as mãos,
 para o meu sonho naufragar.
 Minhas mãos ainda estão molhadas
 do azul das ondas entreabertas,
 e a cor que escorre dos meus dedos
 colore as areias desertas
 O vento vem vindo de longe,
 a noite se curva de frio;
 debaixo da água vai morrendo
 meu sonho dentro de um navio…
 Chorarei quanto for preciso,
 para fazer com que o mar cresça,
 e o meu navio chegue ao fundo
 e o meu sonho desapareça.
 Depois, tudo estará perfeito:
 praia lisa, águas ordenadas,
 meus olhos secos como pedras
 e as minhas duas mãos quebradas.

Ou que é rastro de flor e de estrela,
nuvem e mar...

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“Saquarema”, ost, 1955

Sou entre flor e nuvem,
estrela e mar.
Por que havemos de ser unicamente humanos,
limitados em chorar?

 Não encontro caminhos
fáceis de andar.
Meu rosto vário desorienta as firmes pedras
que não sabem de água e de ar.

 E por isso levito.
É bom deixar
um pouco de ternura e encanto indiferente
de herança, em cada lugar..

Rastro de flor e de estrela,
nuvem e mar.
Meu destino é mais longe e meu passo mais rápido:
a sombra é que vai devagar…

E que canta no desequilíbrio dos mares…

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“Mar grande”, ost, 1954

“Canção”

No desequilíbrio dos mares,
 as proas giram sozinhas…
 Numa das naves que afundaram
 é que certamente tu vinhas.

 Eu te esperei todos os séculos
 sem desespero e sem desgosto,
 e morri de infinitas mortes
 guardando sempre o mesmo rosto

Quando as ondas te carregaram
 meu olhos, entre águas e areias,
 cegaram como os das estátuas,
 a tudo quanto existe alheias.

Minhas mãos pararam sobre o ar
 e endureceram junto ao vento,
 e perderam a cor que tinham
 e a lembrança do movimento.

E o sorriso que eu te levava
 desprendeu-se e caiu de mim:
 e só talvez ele ainda viva
 dentro destas águas sem fim.

Que também chora, na areia a espuma da maré cheia…

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“Lagoa de Abaeté”, ost

“Pescaria”

Cesto de peixes no chão.
Cheio de peixes, o mar.
Cheiro de peixe pelo ar.
E peixes no chão.

Chora a espuma pela areia,
na maré cheia.

As mãos do mar vê e vão,
as mãos do mar pela areia
onde os peixes estão.

As mãos do mar vêm e vão,
em vão.
Não chegarão
aos peixes do chão.

Por isso chora, na areia
a espuma da maré cheia.

… querendo morar no último andar, pois de lá se vê o mar.

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“Marinha”, Salvador. Ost, 1952

No último andar é mais bonito:
 do último andar se vê o mar.
 É lá que eu quero morar.

O último andar é muito longe:
 custa-se muito a chegar.
 Mas é lá que eu quero morar.

Todo o céu fica a noite inteira
 sobre o último andar
 É lá que eu quero morar.

Quando faz lua no terraço
 fica todo o luar.
 É lá que eu quero morar.

Os passarinhos lá se escondem
 para ninguém os maltratar:
 no último andar.

De lá se avista o mundo inteiro:
 tudo parece perto, no ar.
 É lá que eu quero morar:

 no último andar.

Pancetti e Cecília, amantes do mar. Pancetti na cor. Cecília na poesia. Ambos no sentimento. E na serenidade.

 Autor: Catherine Beltrão

 

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