Minha família veio de longe. De terras brumosas e brumas uivantes. E de tempos em tempos, a saudade costuma ganhar peso. Nessas horas, recorre-se a fotos antigas, a objetos que teimam não apodrecer… e que justificam nossas lembranças. Como algumas das aquarelas de Wambach.
Georges Wambach (1902-1965), grande aquarelista nascido em Anvers/Bélgica, era muito boêmio e conheceu minha avó Edith Blin (1891-1983) em 1926, na época em que ela era atriz de teatro. Edith era uma mulher lindíssima e, mesmo sendo casada e mãe de três filhos, atraía olhares e provocava emoções masculinas. Wambach ficou fascinado por essa atriz apaixonante e foi se aproximando da família… Fez retratos da mãe de Edith, dos irmãos de Edith, dos sobrinhos, dos filhos… até chegar nela.
Para compor este post que fala de tempos passados e de sangues familiares, um poema sublime de Cecília Meireles: “Memória”
Minha família anda longe,
com trajos de circunstância:
uns converteram-se em flores,
outros em pedra, água, líquen;
alguns, de tanta distância,
nem têm vestígios que indiquem
uma certa orientação.
Minha família anda longe,
– na Terra, na Lua, em Marte –
uns dançando pelos ares,
outros perdidos no chão.
Tão longe a minha família!
Tão dividida em pedaços!
Um pedaço em cada parte…
Pelas esquinas do tempo,
brincam meus irmãos antigos:
uns anjos, outros palhaços…
Seus vultos de labareda
rompem-se como retratos
feitos em papel de seda.
Vejo lábios, vejo braços,
– por um momento persigo-os;
de repente, os mais exatos
perdem sua exatidão.
Se falo, nada responde.
Depois, tudo vira vento,
e nem o meu pensamento
pode compreender por onde
passaram nem onde estão.
Minha família anda longe.
Mas eu sei reconhecê-la:
um cílio dentro do oceano,
um pulso sobre uma estrela,
uma ruga num caminho
caída como pulseira,
um joelho em cima da espuma,
um movimento sozinho
aparecido na poeira…
Mas tudo vai sem nenhuma
noção de destino humano,
de humana recordação.
Minha família anda longe.
Reflete-se em minha vida,
mas não acontece nada:
por mais que eu esteja lembrada,
ela se faz de esquecida:
não há comunicação!
Uns são nuvem, outros, lesma…
Vejo as asas, sinto os passos
de meus anjos e palhaços,
numa ambígua trajetória
de que sou o espelho e a história.
Murmuro para mim mesma:
“É tudo imaginação!”
Mas sei que tudo é memória…
O tempo passa. E o sangue continua correndo nas veias da família Blin. Mesmo naqueles que não mais possuem o Blin em seu nome. Pois eu sou a última da família, aqui no Brasil, a ter este privilégio.
Autor: Catherine Beltrão