Sangue, tempo e aquarelas

Minha família veio de longe. De terras brumosas e brumas uivantes. E de tempos em tempos, a saudade costuma ganhar peso. Nessas horas, recorre-se a fotos antigas, a objetos que teimam não apodrecer… e que justificam nossas lembranças. Como algumas das aquarelas de Wambach.

retrato_Edith1

“Retrato de Edith”, de Georges Wambach. 1932, aquarela, 16 X 18cm

Georges Wambach (1902-1965), grande aquarelista nascido em Anvers/Bélgica, era muito boêmio e conheceu minha avó Edith Blin (1891-1983) em 1926, na época em que ela era atriz de teatro. Edith era uma mulher lindíssima e, mesmo sendo casada e mãe de três filhos, atraía olhares e provocava emoções masculinas. Wambach ficou fascinado por essa atriz apaixonante e foi se aproximando da família… Fez retratos da mãe de Edith, dos irmãos de Edith, dos sobrinhos, dos filhos… até chegar nela.

BonneMaman7

“Bonne Maman” (mãe de Edith), de Georges Wambach. 1938, aquarela, 38 X 32cm

Para compor este post que fala de tempos passados e de sangues familiares, um poema sublime de Cecília Meireles: “Memória

retrato_Jean

“Retrato de Jean” (irmão de Edith), de Georges Wambach. 1933, aquarela, 20 X 14cm

Minha família anda longe,
 com trajos de circunstância:
 uns converteram-se em flores,
 outros em pedra, água, líquen;
 alguns, de tanta distância,
 nem têm vestígios que indiquem
 uma certa orientação.

Minha família anda longe,
– na Terra, na Lua, em Marte –
uns dançando pelos ares,
 outros perdidos no chão.

retrato_Raymonde

“Retrato de Raymonde” (irmã de Edith), de Georges Wambach. 1931, aquarela, 20 X 14cm

Tão longe a minha família!
 Tão dividida em pedaços!
 Um pedaço em cada parte…
Pelas esquinas do tempo,
 brincam meus irmãos antigos:
 uns anjos, outros palhaços…
Seus vultos de labareda
 rompem-se como retratos
 feitos em papel de seda.
 Vejo lábios, vejo braços,
– por um momento persigo-os;
 de repente, os mais exatos
 perdem sua exatidão.
 Se falo, nada responde.
 Depois, tudo vira vento,
 e nem o meu pensamento
 pode compreender por onde
 passaram nem onde estão.

retrato_Janine

“Retrato de Jeannine” (sobrinha de Edith), de Georges Wambach. 1933, aquarela, 20 X 14cm

Minha família anda longe.
 Mas eu sei reconhecê-la:
 um cílio dentro do oceano,
 um pulso sobre uma estrela,
 uma ruga num caminho
 caída como pulseira,
 um joelho em cima da espuma,
 um movimento sozinho
 aparecido na poeira…
Mas tudo vai sem nenhuma
 noção de destino humano,
 de humana recordação.

retrato_Georges

“Retrato de Georges” (filho de Edith), de Georges Wambach. 1928, aquarela, 20 X 14cm

Minha família anda longe.
 Reflete-se em minha vida,
 mas não acontece nada:
 por mais que eu esteja lembrada,
 ela se faz de esquecida:
 não há comunicação!
 Uns são nuvem, outros, lesma…
Vejo as asas, sinto os passos
 de meus anjos e palhaços,
 numa ambígua trajetória
 de que sou o espelho e a história.
 Murmuro para mim mesma:
“É tudo imaginação!”

Mas sei que tudo é memória…

retrato_Ivan

“Retrato de Ivan” (filho de Edith, meu pai), de Georges Wambach. 1929, aquarela, 20 X 14cm

O tempo passa. E o sangue continua correndo nas veias da família Blin. Mesmo naqueles que não mais possuem o Blin em seu nome. Pois eu sou a última da família, aqui no Brasil, a ter este privilégio.

  Autor: Catherine Beltrão

Comente